Os
comunistas radicais deram um golpe contra Mikhail Gorbachev 20 anos atrás, e a
União Soviética caiu pouco depois. Documentos antes desconhecidos, obtidos pelo
“Spiegel”, mostram como o último líder soviético estava desesperado enquanto
lutava para se manter no poder – e como ele implorou à Alemanha por dinheiro
para salvar seu país.
Há um
momento determinado – uma única decisão- que algumas pessoas ainda guardam
contra Mikhail Gorbachev hoje, 20 anos depois. Gorbachev, o último líder do
Partido Comunista Soviético e último presidente da União Soviética, sua mulher
e seu círculo de confiança mais próximo sobreviveram à tentativa de golpe da
KGB, dos comandantes das forças armadas e do ministro do interior. Eles tiveram
permissão para voltar para Moscou da prisão domiciliar imposta na casa de
férias de Gorbachev em Foros, na Crimeia. Seu avião pousou na capital às 2h15
da manhã, hora local, no dia 22 de agosto de 1991.Nos três dias anteriores,
cerca de 60.000 pessoas tinham acampado na frente da Casa Branca russa, o
assento parlamentar da República Soviética, que tinha se tornado o reduto dos
defensores de Gorbachev. Quando ouviram no rádio que ele havia sido
liberado da prisão domiciliar na península da Crimeia, eles deram vivas,
gritaram “presidente, presidente” e esperaram a chegada de Gorbachev, que na
época estava com 60 anos.
Contudo,
Gorbachev, que só foi liberado por que os líderes do golpe tinham ficado com
medo de seu próprio povo e não se aventuraram a invadir a Casa Branca, chocou
seus camaradas russos em júbilo. Em vez de pedir para ser levado do aeroporto
diretamente para junto de seus partidários, e em vez de saborear o momento de
vitória e celebrar a derrota dos conspiradores, ele mandou o motorista levá-lo
à sua datcha. Ele passou o resto da noite em casa e foi trabalhar no Kremlin na
manhã seguinte.
Pelos
padrões de hoje, foi uma gafe de relações públicas sem tamanho. Mas os três
dias de prisão domiciliar na península da Crimeia não havia apenas confundido o
país, também prejudicado o equilíbrio interno de Gorbachev – e especialmente da
mulher dele, Raisa Maximovna Gorbachova.
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A mulher de
Gorbachev foi quem pagou o maior preço pelos três dias. No voo de volta para
Moscou, ela precisou se deitar. Tinha hematomas nos olhos, a fala estava
prejudicada e sentia um lado do corpo paralisado. Os médicos diagnosticaram um
derrame, que depois se concluiu ter sido um ataque severo de hipertensão.
O estresse
daqueles dias, quando a União Soviética estava chegando ao fim após quase 69 anos
de existência, foi demais para os Gorbachev. Quem agora brilhava como novo
astro político em Moscou não era o diretor do Kremlin, mas seu antigo
protegido, Boris Yeltsin. Imediatamente após o golpe, Yeltsin proibiu todas as
atividades do Partido Comunista Soviético, do qual Gorbachev havia sido
secretário-geral até então. E, com o movimento de secessão entre as repúblicas
soviéticas não russas, Gorbachev se tornou um presidente sem um Estado. Logo, o
que restava do centro da República da União Soviética seria a Rússia, que
Gorbachev não mais controlava.
Raisa
Gorbachova passou os dias pós-golpe na varanda da datcha do presidente.
Foi em um
desses dias que ela apagou seu passado, queimando 52 cartas que seu marido
havia escrito a ela em viagens oficiais. Eram “cartas de nossa juventude”, como
Gorbachev disse mais tarde, cartas que a mulher tinha guardado a vida toda. Mas
após suas experiências em Foros, ela ficou com medo, inclusive daqueles que
assumiriam o poder no futuro. Ela chorou ao jogar no forno as cartas
cuidadosamente preservadas, dizendo ao marido que queria impedir que pessoas de
fora se metessem em suas vidas.
Gorbachev,
que estava igualmente perdido sobre o que ia acontecer com sua família e o país
nas próximas semanas, e que respeitava as opiniões da mulher, seguiu seu
exemplo e começou a queimar outros documentos.
Ele jogou 25
cadernos nas chamas. Eles incluíam notas que havia feito quando estava no
cargo, detalhes do dia-a-dia da vida política, descrições dos políticos e
vários projetos. O único que guardou foi seu diário privado. Quase 20 anos se
passaram antes dele citar esse incidente, em uma entrevista de fevereiro de
2011 ao jornal que ele publica, “Novaya Gazeta”.
Arquivo
contém milhares de documentos
Os
documentos oficiais de seus quase seis anos no cargo foram preservados.
Gorbachev levou-os quando anunciou sua renúncia como presidente soviético no
final do ano e doou-os para a fundação que tem seu nome. Desde então, cerca de
10.000 documentos estão armazenados na sede da fundação em Leningrad Prospect
39, em Moscou. Eles incluem os arquivos de seus assessores de política externa,
Vadim Zagladin e Anatoly Chernyaev.
Os papeis
ilustram o período final do experimento comunista. Eles incluem as minutas das
negociações com líderes estrangeiros, as recomendações dos assessores de
Gorbachev escritas à mão, as observações para conversas de telefone e gravações
dessas conversas, notas confidenciais de embaixadores e registros
estenográficos de debates no politburo.
Nenhuma das
questões com as quais o auto-proclamado reformista da União Soviética foi
confrontado nesses anos ficou de fora.
Há
memorandos nos quais o líder soviético é aconselhado sobre como pôr fim à
guerra no Afeganistão ou como lidar com os judeus que emigravam, ou explicar
para ele por que deveria se recusar a se reunir com o líder palestino Yasser
Arafat (“Nada real pode ser esperado dele”), ou por que deveria evitar levar
Mathias Rust, jovem aviador alemão que pousou ilegalmente um pequeno avião
perto da praça Vermelha, à justiça e em vez disso recebê-lo no Kremlin (“Há
questões sobre seu estado psicológico”).
Há relatos
de fontes de dentro do Partido Comunista da Alemanha Oriental, descrevendo como
estavam as condições na Alemanha Oriental e detalhando quem ainda era confiável
no politburo em Berlim Oriental. E há relatórios igualmente meticulosos sobre o
que a revista francesa “Paris Match” escreveu sobre Raisa Gorbachova, ou o que
a cantora russa Alla Pugacheva disse a uma revista alemã sobre a política de
perestroica de Gorbachev.
Burocracia
ineficiente
A leitura
dos documentos é uma volta no tempo. De uma só vez, eles revelam os muitos
problemas do sistema calcificado, desde a rebelião de agricultores e mineiros
até intelectuais exigindo eleições democráticas. O povo dos Estados bálticos,
os georgianos e os moldávios estavam se revoltando contra os russos, enquanto o
fim da doutrina Brejnev – a política externa da União Soviética que ditava que
os países não poderiam deixar o Pacto de Varsóvia- estava surgindo na Europa
Oriental.
Gorbachev,
que tinha sido autoridade da província de Stavropol, segurava o leme do país,
observando-o sufocar como resultado de seu enorme tamanho e a recusa de sua
burocracia em mudar de rumo. Os documentos também mostram que, mesmo sob
Gorbachev, a burocracia estava ineficiente como sempre.
O assessor
de Gorbachev Anatoly Chernyaev, por exemplo, reclama dos líderes incompetentes
do movimento comunista global, como o diretor do Partido Comunista francês
Georges Marchais (“cavalo morto”) e Gus Hall, do Partido Comunista EUA (“um
filisteu com conceitos plebeus”). Ainda assim, Moscou pagava milhões para seus
representantes em torno do mundo.
Nessa época,
as lojas na União Soviética estavam sem ovos e açúcar, e até a vodca estava em
falta. As condições eram tão ruins que, em setembro de 1988, Chernyaev teve que
submeter um pedido escrito para que uma conexão telefônica fosse instalada no
apartamento de seu motorista Nikolai Nikolayevich Maikov, para que o
secretário-geral pudesse alcançá-lo.
O “Spiegel”
também é mencionado repetidamente nos documentos internos do arquivo de
Gorbachev. Por exemplo, um memorando de junho de 1987 revela que Chernyaev
ficou claramente revoltado com as 54 questões que jornalistas do “Spiegel”
enviaram ao líder do Kremlin, que ele caracterizou como “bastante insolentes”.
Ele suspeitava que o “Spiegel” pretendia conduzir a entrevista que tinha
solicitado a Gorbachev como “um interrogatório”. No memorando, Chernyaev
escreve que o Kremlin deveria “é claro, não reagir” ao pedido. O pedido está
carimbado com “devolução com negativa”. De fato, a entrevista não aconteceu.
Hoje, 24 anos depois, está claro o motivo.
Ainda é tabu
Gorbachev
mais tarde usou alguns dos documentos em seus livros, para desgosto da atual
liderança do Kremlin. Mas muitos dos documentos são tabus até hoje. Em parte
porque se relacionam a decisões ou pessoas sobre as quais Gorbachev ainda não
deseja discutir. Mas a maior parte porque não se encaixam com a imagem que
Gorbachev fez de si mesmo, ou seja, de um reformista avançando com
determinação, gradualmente redesenhando seu enorme país de acordo com suas
ideias.
Durante uma
visita de pesquisa à Fundação Gorbachev, o jovem historiador russo Pavel
Stroilov, que atualmente mora em Londres, secretamente copiou cerca de 30.000
páginas do material arquivado e disponibilizou-as ao “Spiegel”.
Os
documentos revelam algo que Gorbachev prefere manter em silêncio: que foi
movido a agir pela situação do Estado soviético moribundo e que frequentemente
perdia as coisas no caos. Eles também mostram que ele tinha duas caras e,
contrário às suas declarações, algumas vezes fazia acordos com os radicais do partido
e militares.
Em outras
palavras, o líder do Kremlin fez o que muitos estadistas aposentados fazem:
retocou sua imagem para que transmitisse a de um honesto reformista.
Tradução:
Deborah Weinberg
Veja mais:
(Fonte:
NEEF, Christian. Documentos secretos revelam a verdade por trás do colapso
soviético. Disponível em:http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2011/08/12/documentos-secretos-revelam-a-verdade-por-tras-do-colapso-sovietico.jhtm)
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