“Quando a Guerra da Argélia
acabou e foi proclamada a independência, em 1962, achei que os argelinos nunca
mais poriam os pés na França. Foi um grande engano.” Professor emérito do
Instituto de Geopolítica da França, Yves Lacoste, autor da declaração acima,
acompanha a questão argelina há mais de meio século. Para ele, não há como
separar o atual clima tenso entre franceses de extrema direita e a população de
origem argelina da longa guerra pela independência do país, entre 1954 e 1962.
Ele vai mais longe: as raízes do conflito atual estão na época colonial.
A França levou 30 anos para conseguir ocupar a Argélia, numa batalha que começou em 1830 e matou um terço da população local. Apesar de terem lutado ao lado dos franceses nas duas grandes guerras mundiais, os argelinos sofreram antes forte discriminação em seu país: a principal mesquita local foi convertida na Catedral de Argel e apenas a minoria francesa tinha o direito de eleger deputados e senadores. Com esses e outros elementos, fica fácil entender porque Lacoste imaginava que a raiva da França impediria os argelinos de atravessar o Mediterrâneo rumo à antiga metrópole. Mas não foi bem isso o que aconteceu. O movimento dos argelinos em direção à França, que crescia em um ritmo acelerado antes da guerra (sextuplicou entre 1946 e 1956), continuou crescendo depois dela. Em 1946, haviam 50 mil argelinos na França; em 1956, eles eram 300 mil; atualmente, contando os descendentes, são mais de 3 milhões.
A imigração em massa deu-se por diversas razões. As mais óbvias: a França tinha necessidade de mão de obra e pagava salários superiores aos da Argélia. A onda migratória não incomodou ninguém no início, já que o governo francês precisava de trabalhadores. Quase 50 anos mais tarde, no entanto, a situação degringolou. A Guerra Civil Argelina (1991-2002) opôs o governo da Argélia a grupos radicais islâmicos e terminou com um saldo de mais de 100 mil mortos. Os rebeldes não conseguiram tomar o poder, e muitos deles acabaram se refugiando na França. Quando chegaram lá, a receptividade dos franceses já não era a mesma. Em meados da década de 1970, o choque do petróleo, o desemprego, as greves e a delinquência incendiaram a relação entre os dois povos. Diversos problemas estavam surgindo e o preconceito subia na mesma proporção.
Realidade francesa
É nesse contexto que aparece a figura de Jean-Marie Le Pen, presidente do Front National (FN). Já em 1975, ele declarou que o desemprego era culpa dos imigrantes – o fortalecimento do FN, aliás, está intimamente ligado à imigração argelina. Em 1983, durante a Guerra do Irã, para combater uma greve de operários da Renault na periferia parisiense, o governo atacou pelo lado da religião. Como a maioria dos grevistas era de origem argelina – e a maioria dos trabalhadores da fábrica também – o ministro do interior tratou-os de xiitas. “São muçulmanos alheios à realidade francesa”, sentenciou. A partir daí, a opinião pública mudou seu ponto de vista: antes os argelinos eram trabalhadores imigrantes; depois, passaram a ser trabalhadores muçulmanos. Logo depois, o FN assumiu a prefeitura de Boulogne Billancourt, justamente onde ficava a fábrica – e não foi coincidência.
“O background das tensões atuais são a crise econômica da França, a maneira de o governo reagir a ela e também a intensificação de uma série de estereótipos contra imigrantes argelinos, criados na época colonial”, afirma a historiadora Laure Pitti, especialista em imigração argelina e membro da equipe que trabalha no futuro Museu da Imigração, em Paris. Segundo a historiadora, essa ideia alastrou-se com o tempo. A ela foram acrescentados outros preconceitos, sendo o medo de muçulmanos um dos principais. Um bom exemplo da segregação é uma disposição específica na lei de imigração que faz referência aos argelinos. Mesmo os turistas têm dificuldade de conseguir visto para cruzar o Mediterrâneo. “A França acha que continua sendo um Eldorado para eles, mesmo com as estatísticas mostrando que o fluxo de argelinos em direção ao Canadá é muito maior atualmente”, diz Pitti.
O medo do terrorismo também alimentou essa relação, principalmente depois dos atentados em Paris na década de 1990, do 11 de Setembro e dos ataques em Londres e Madri. Hoje, esse temor talvez seja o principal ingrediente do preconceito. A França tem aproximadamente seis milhões de imigrantes de origem muçulmana (além dos argelinos, também há tunisianos, marroquinos e africanos da região subsaariana) e, desse total, quatro milhões têm nacionalidade estrangeira.
Essa receita explosiva contém outro ingrediente: a delinquência. Em sua tese de doutorado – a primeira a estudar a relação entre o Front Nacional e o crescimento da delinquência por parte de jovens filhos de imigrantes –, o pesquisador Bernard Alidières analisou 1,5 mil comunas do norte da França e chegou a um resultado no mínimo curioso: os votos da extrema direita se concentram justamente nos lugares com o maior número de argelinos e descendentes. “As pessoas que vivem perto da população de origem magrebina são as que mais votam no FN”, diz Alidières.
No final de 2005, a questão ganhou força no episódio conhecido como a Revolta das Banlieues. Jovens moradores de conjuntos habitacionais, situados principalmente na periferia de Paris, mas também em outras cidades do interior, começaram a explodir carros e a atacar viaturas policiais. Foi uma reação à morte de dois garotos que morreram eletrocutados em uma rede de alta tensão, durante uma perseguição policial. Na ocasião, o ministro do interior, Nicolas Sarkozy, chamou os moradores da periferia de “gentalha”. Em três semanas de confrontos violentos entre a polícia e os banlieuzards (os “manos” da França), mais de 9 mil carros foram incendiados e quase 3 mil pessoas presas.
Especialista na questão, o pesquisador Alidières afirma que a crise do final de 2005 também está ligada a uma tradição de delinquência juvenil. “Faz vinte anos que carros são incediados na França. Não de maneira generalizada como no inverno passado, é verdade. Mas o problema é que antes ninguém falava nada”, diz. Segundo ele, com medo de parecer politicamente incorreta, a esquerda francesa sempre evitou falar desses episódios. “A novidade é que as coisas se tornaram mais visíveis”.
Para o professor Lacoste, do Instituto Francês de Geopolítica, a concentração de argelinos nas periferias dificulta a adaptação dessa população aos costumes locais e fortalece o movimento islâmico. “O islamismo tem se intensificado na França. Até 1989, eu nunca havia visto meninas com a cabeça coberta por véu. Mesmo na Argélia, isso não existia. Hoje, a internet e redes de televisão da Arábia Saudita e do Irã exercem uma forte influência sobre a juventude de origem árabe na França”.
Aí é uma bola de neve: os jovens concentram-se numa região com poucos atrativos de lazer, sentem-se discriminados na escola, formam turmas com altos índices de evasão, têm dificuldades em arrumar emprego e acabam vítimas de um estereótipo tão forte que mesmo os de boa formação não conseguem trabalho. O nome árabe e o endereço na periferia estão longe de ser um ponto positivo no currículo.
Eleições 2007
Com as eleições presidenciais marcadas para março de 2007, a expectativa é que o clima de tensão aumente. Afinal, a situação dos imigrantes é o grande tema de debate entre os presidenciáveis. Na extrema direita, Le Pen segue com seu discurso de fundo racista. Também alinhado à direita, Nicolas Sarkosy defende a expulsão de estrangeiros indesejáveis, mesmo que estejam estabelecidos no país há muitos anos. Até mesmo o Partido Socialista tem adotado um discurso que coloca nas costas dos estrangeiros boa parte da responsabilidade pelos problemas nacionais. É de se esperar, portanto, que conflitos como o do inverno passado se repitam em breve.
A França levou 30 anos para conseguir ocupar a Argélia, numa batalha que começou em 1830 e matou um terço da população local. Apesar de terem lutado ao lado dos franceses nas duas grandes guerras mundiais, os argelinos sofreram antes forte discriminação em seu país: a principal mesquita local foi convertida na Catedral de Argel e apenas a minoria francesa tinha o direito de eleger deputados e senadores. Com esses e outros elementos, fica fácil entender porque Lacoste imaginava que a raiva da França impediria os argelinos de atravessar o Mediterrâneo rumo à antiga metrópole. Mas não foi bem isso o que aconteceu. O movimento dos argelinos em direção à França, que crescia em um ritmo acelerado antes da guerra (sextuplicou entre 1946 e 1956), continuou crescendo depois dela. Em 1946, haviam 50 mil argelinos na França; em 1956, eles eram 300 mil; atualmente, contando os descendentes, são mais de 3 milhões.
A imigração em massa deu-se por diversas razões. As mais óbvias: a França tinha necessidade de mão de obra e pagava salários superiores aos da Argélia. A onda migratória não incomodou ninguém no início, já que o governo francês precisava de trabalhadores. Quase 50 anos mais tarde, no entanto, a situação degringolou. A Guerra Civil Argelina (1991-2002) opôs o governo da Argélia a grupos radicais islâmicos e terminou com um saldo de mais de 100 mil mortos. Os rebeldes não conseguiram tomar o poder, e muitos deles acabaram se refugiando na França. Quando chegaram lá, a receptividade dos franceses já não era a mesma. Em meados da década de 1970, o choque do petróleo, o desemprego, as greves e a delinquência incendiaram a relação entre os dois povos. Diversos problemas estavam surgindo e o preconceito subia na mesma proporção.
Realidade francesa
É nesse contexto que aparece a figura de Jean-Marie Le Pen, presidente do Front National (FN). Já em 1975, ele declarou que o desemprego era culpa dos imigrantes – o fortalecimento do FN, aliás, está intimamente ligado à imigração argelina. Em 1983, durante a Guerra do Irã, para combater uma greve de operários da Renault na periferia parisiense, o governo atacou pelo lado da religião. Como a maioria dos grevistas era de origem argelina – e a maioria dos trabalhadores da fábrica também – o ministro do interior tratou-os de xiitas. “São muçulmanos alheios à realidade francesa”, sentenciou. A partir daí, a opinião pública mudou seu ponto de vista: antes os argelinos eram trabalhadores imigrantes; depois, passaram a ser trabalhadores muçulmanos. Logo depois, o FN assumiu a prefeitura de Boulogne Billancourt, justamente onde ficava a fábrica – e não foi coincidência.
“O background das tensões atuais são a crise econômica da França, a maneira de o governo reagir a ela e também a intensificação de uma série de estereótipos contra imigrantes argelinos, criados na época colonial”, afirma a historiadora Laure Pitti, especialista em imigração argelina e membro da equipe que trabalha no futuro Museu da Imigração, em Paris. Segundo a historiadora, essa ideia alastrou-se com o tempo. A ela foram acrescentados outros preconceitos, sendo o medo de muçulmanos um dos principais. Um bom exemplo da segregação é uma disposição específica na lei de imigração que faz referência aos argelinos. Mesmo os turistas têm dificuldade de conseguir visto para cruzar o Mediterrâneo. “A França acha que continua sendo um Eldorado para eles, mesmo com as estatísticas mostrando que o fluxo de argelinos em direção ao Canadá é muito maior atualmente”, diz Pitti.
O medo do terrorismo também alimentou essa relação, principalmente depois dos atentados em Paris na década de 1990, do 11 de Setembro e dos ataques em Londres e Madri. Hoje, esse temor talvez seja o principal ingrediente do preconceito. A França tem aproximadamente seis milhões de imigrantes de origem muçulmana (além dos argelinos, também há tunisianos, marroquinos e africanos da região subsaariana) e, desse total, quatro milhões têm nacionalidade estrangeira.
Essa receita explosiva contém outro ingrediente: a delinquência. Em sua tese de doutorado – a primeira a estudar a relação entre o Front Nacional e o crescimento da delinquência por parte de jovens filhos de imigrantes –, o pesquisador Bernard Alidières analisou 1,5 mil comunas do norte da França e chegou a um resultado no mínimo curioso: os votos da extrema direita se concentram justamente nos lugares com o maior número de argelinos e descendentes. “As pessoas que vivem perto da população de origem magrebina são as que mais votam no FN”, diz Alidières.
No final de 2005, a questão ganhou força no episódio conhecido como a Revolta das Banlieues. Jovens moradores de conjuntos habitacionais, situados principalmente na periferia de Paris, mas também em outras cidades do interior, começaram a explodir carros e a atacar viaturas policiais. Foi uma reação à morte de dois garotos que morreram eletrocutados em uma rede de alta tensão, durante uma perseguição policial. Na ocasião, o ministro do interior, Nicolas Sarkozy, chamou os moradores da periferia de “gentalha”. Em três semanas de confrontos violentos entre a polícia e os banlieuzards (os “manos” da França), mais de 9 mil carros foram incendiados e quase 3 mil pessoas presas.
Especialista na questão, o pesquisador Alidières afirma que a crise do final de 2005 também está ligada a uma tradição de delinquência juvenil. “Faz vinte anos que carros são incediados na França. Não de maneira generalizada como no inverno passado, é verdade. Mas o problema é que antes ninguém falava nada”, diz. Segundo ele, com medo de parecer politicamente incorreta, a esquerda francesa sempre evitou falar desses episódios. “A novidade é que as coisas se tornaram mais visíveis”.
Para o professor Lacoste, do Instituto Francês de Geopolítica, a concentração de argelinos nas periferias dificulta a adaptação dessa população aos costumes locais e fortalece o movimento islâmico. “O islamismo tem se intensificado na França. Até 1989, eu nunca havia visto meninas com a cabeça coberta por véu. Mesmo na Argélia, isso não existia. Hoje, a internet e redes de televisão da Arábia Saudita e do Irã exercem uma forte influência sobre a juventude de origem árabe na França”.
Aí é uma bola de neve: os jovens concentram-se numa região com poucos atrativos de lazer, sentem-se discriminados na escola, formam turmas com altos índices de evasão, têm dificuldades em arrumar emprego e acabam vítimas de um estereótipo tão forte que mesmo os de boa formação não conseguem trabalho. O nome árabe e o endereço na periferia estão longe de ser um ponto positivo no currículo.
Eleições 2007
Com as eleições presidenciais marcadas para março de 2007, a expectativa é que o clima de tensão aumente. Afinal, a situação dos imigrantes é o grande tema de debate entre os presidenciáveis. Na extrema direita, Le Pen segue com seu discurso de fundo racista. Também alinhado à direita, Nicolas Sarkosy defende a expulsão de estrangeiros indesejáveis, mesmo que estejam estabelecidos no país há muitos anos. Até mesmo o Partido Socialista tem adotado um discurso que coloca nas costas dos estrangeiros boa parte da responsabilidade pelos problemas nacionais. É de se esperar, portanto, que conflitos como o do inverno passado se repitam em breve.
(Fonte: MONTEIRO, Lúcia.
Argélia X França: relações explosivas. Disponível
em: http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/argelia-x-franca-relacoes-explosivas-435070.shtml
. Acesso em: 18 abr. 2012)
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