O fim do Apartheid há 20 anos.
(De Klerk e Mandela se cumprimentam, no Fórum Econômico Mundial, em janeiro de 1992, dois meses antes do referendo | Foto: World Economic Forum.)
Felipe Prestes e Samir
Oliveira
“Você apoia o processo de
reformas que o presidente começou no dia 2 de fevereiro de 1990, cujo objetivo
é uma nova Constituição por meio de negociação?”. No dia 17 de março de 1992 –
há exatos 20 anos, portanto — 2,8 milhões de sul-africanos brancos foram às
urnas para responder a questão acima. Mais de 68% marcaram “sim” e referendaram
as ações do presidente Frederik De Klerk rumo a uma nova Constituição,
negociada com lideranças negras, que poria fim ao regime racista do Apartheid.
Entre os primeiros passos dados
por De Klerk em 1990 estavam o fim da clandestinidade de partidos como o
Congresso Nacional Africano e a liberdade de seu principal líder, Nelson
Mandela. O presidente também revogou várias leis do arcabouço jurídico que
sustentava o regime de segregação racial. Mas a decisão dos brancos no
referendo de 1992 não partiu de uma tomada de consciência, mas falta de opção.
Apenas uma minoria branca apoiava nas ruas a liberdade aos negros, e o próprio
De Klerk antes de se tornar presidente não defendia o fim do Apartheid.
“Não foi uma mera concessão dos
brancos aos negros. Os brancos ficaram encurralados”, conta Analúcia
Danilivicz, professora de Relações Internacionais da UFRGS e pesquisadora do
Cebrafrica – Centro Brasileiro de Estudos Africanos da universidade. Danilivcz,
que vai publicar em breve o livro “A Revolução Sul-Africana: Revolução Social
ou Libertação nacional?”, explica que a tensão na África do Sul beirava a
guerra civil. “Passou a ser impossível controlar as leis de contenção dos
negros. Na medida em que a crise ia aumentando, os negros levavam o caos às
cidades e como resultado disto vem a repressão. Ou os brancos davam os direitos
a essa maioria para que a instabilidade fosse contida, ou acabariam
sucumbindo”.
(Danilevicz: "O governo do Apartheid tinha o papel de bastião anti-comunista na região. Quando a União Soviética deixa de existir, não tem a menor relevância ter aquele grupo no poder na África do Sul" | Foto: Cristiano Estrela/Sindibancários)
O regime criado em 1948 se tornou
insustentável com o aumento da tensão interna, mas também por fatores
econômicos e de relações internacionais. A crise econômica que atingiu o mundo
inteiro na década de 1980 não poupou a África do Sul. A instabilidade se
agravou porque o país passou a sentir cada vez mais as sanções impostas pela
comunidade internacional. Durante a Guerra Fria, ter um regime branco e
capitalista encravado no sul da África fora estratégico para as potências
ocidentais, na medida em que grupos de esquerda apoiados pela União Soviética
tomavam o poder em países vizinhos, como Angola e Moçambique. O regime racista
era fortemente militarizado, com apoio velado de potências bélicas da Europa,
Estados Unidos e Israel. Assim, o regime conseguia sufocar, inclusive, grupos
guerrilheiros que existiam desde os anos 1960.
Quando De Klerk assumiu o poder,
em 1989, mesmo ano da queda do Muro de Berlim, a situação já era diferente. “O
governo do Apartheid tinha o papel de bastião anti-comunista na região. Quando
a União Soviética deixa de existir, não tem a menor relevância ter aquele grupo
no poder na África do Sul. Se torna melhor para o Ocidente um governo de
maioria que abra a economia do país, se adequando ao neoliberalismo. Aí o
discurso dos direitos humanos vem à tona como crítica internacional ao regime”,
explica Danilevcz.
(Massacre de Shaperville, quando policiais mataram 69 pessoas, ajudou a empurrar os negros para a guerrilha.)
“Sabedoria
política levou a uma transição negociada”, diz professor da UnB.
O pensamento da pesquisadora da
UFRGS converge com o de Pio Penna Filho, professor de Relações Internacionais
da UnB. “Quando houve o referendo, os brancos sabiam que o regime já tinha
acabado”, afirma o especialista em África contemporânea. Entre os antecedentes
que levaram à derrocada do Apartheid, Penna cita também a conjuntura
internacional com o fim da Guerra Fria e a crise econômica dos anos 1980. Ele
também relata que as manifestações dos negros eram cada vez mais radicais a
partir do final dos anos 1970 e durante os 80. “Os jovens negros perderam a
paciência com líderes que tentavam uma conciliação”, afirma.
De fato, durante a década
de 1980, atentados à bomba, por exemplo, se tornavam comuns. Ainda assim, o fim
do Apartheid deu lugar à conciliação. De um lado, o Partido Nacional se deu
conta de que era preciso abrir o regime para não ser engolido. De outro,
líderes como Mandela aceitaram negociar. “Conta aí a sabedoria política de um
grupo do Partido Nacional, liderado por De Klerk, de fazer uma transição
negociada. Do outro lado, havia um grupo disposto a negociar, o CNA, e Mandela
foi o fiel da balança, ele era adorado pelos negros e respeitado pelos
brancos”, afirma Penna.
Para o professor da UnB, a
presença de Mandela foi determinante para que o fim do regime de exclusão
racial não terminasse de maneira sangrenta. “Foi um golpe de sorte terem
mantido este homem vivo, um homem de sua altivez. Se não, acho que o Apartheid
terminaria de outra maneira”, diz.
Analúcia Danilivicz explica
que o CNA é uma organização com uma história bastante peculiar. O partido
completa cem anos em 2012 e surgiu tentando negociar com os brancos. A partir
de 1960, há uma inflexão rumo a guerrilha, motivada pelo Massacre de
Shaperville, em que a polícia reprimiu 20 mil negros que protestavam contra a
Lei do Passe, que os obrigava a portar cartões de identificação, onde estavam
escritos os locais de Johanesburgo onde poderiam transitar. Sessenta e nove
pessoas foram mortas a tiros e 186 ficaram feridas, entre elas mulheres e
crianças. “Ali o CNA se deu conta que não ia adiantar tentar estabelecer um
diálogo com o Partido Nacional”, conta a professora da UFRGS.
Ainda assim, quando seu
principal líder é solto em 1990, o partido volta às origens, capitaneando a
negociação para um governo em que a maioria negra fosse livre. Em 1993,
enquanto tratavam da nova Constituição, Mandela e De Klerk ganharam
conjuntamente o Nobel da Paz “por seu trabalho pelo fim pacífico do Apartheid e
por criarem as bases de uma nova e democrática África do Sul”.
África do Sul ainda não se libertou completamente do
Apartheid
Em 1994, ocorre a primeira
eleição com participação dos negros. O CNA vence com 62% dos votos, mas governa
junto com o Partido Nacional, que teve 20%, em um governo de “unidade
nacional”, conforme já fora estabelecido pela Constituição “interina”, de 1993 –
em 1996, entra em vigor a Constituição definitiva da África do Sul
pós-Apartheid. Mandela foi alçado presidente e, desde aquela eleição, o CNA
sempre foi o partido mais votado, tendo atualmente Jacob Zuma à frente do
governo sul-africano.
Apesar da primazia do partido que
lutou pela liberdade dos negros, a exclusão social permanece, bem como o
racismo. Na questão social, pesa o fato de que tudo o que era dos brancos
continuou com eles. “As propriedades foram mantidas na mão dos brancos.
Comenta-se que isto fez parte do acordo entre as altas lideranças”, conta Pio
Penna Filho. “Foi uma conversão de eixos que levou o Partido Nacional a
procurar o principais lideres do CNA e negociar uma transição para que os
negros chegassem ao poder, mas os brancos não perderam sua inserção na
economia. Hoje, 80% da economia está nas mãos dos brancos. A minoria branca
influencia na capacidade de gestão nos três governos negros que tivemos
pós-Apartheid”, afirma Analúcia Danilivicz.
“O Apartheid deixa um
legado terrível de racismo e de exclusão social. Enquanto havia este regime, a
renda só era distribuída entre os brancos”, explica Penna Filho. O professor da
UnB pondera que, embora a desigualdade persista, muitos negros conseguiram
ascender socialmente após o fim do regime racista. “Houve mudanças com a
promoção de políticas públicas. Hoje já há classe média negra e negros ricos”,
diz.
(Estátuas de Albert Luthuli, Desmond Tutu, Frederik de Klerk e Nelson Mandela. Três líderes negros e um branco, todos agraciados com Prêmio Nobel da Paz | Foto: flowcomm/Flick)
“Durante 350 anos o sistema
econômico sul-africano foi dominado pelos brancos. Temos 17 anos de governo de
maioria negra. Em apenas duas décadas é impossível transformar totalmente um
sistema fundado na exploração, na segregação e na discriminação que vigorou
esse tempo todo”, opina Analúcia Danilivcz.
As relações entre brancos e
negros também permanecem sendo problemáticas. Em 1995, foi estabelecida a
Comissão da Verdade e da Reconciliação, que estabeleceu anistia para todos os
que confessassem crimes relacionados ao Apartheid e aceitassem depor. A
comissão é tida como um dos exemplos internacionais de justiça de transição, mas
não há ainda uma real reconciliação no país.
“Resta um racismo em
grandes proporções, entre as gerações que viveram o Apartheid. A África do Sul
deve superar isto em dez, vinte anos. De 1994 para cá é que crianças negras e
brancas passaram a brincar juntas”, afirma Penna. “Esse regime, que vigorou
durante praticamente toda a segunda metade do século XX, pode ter sido
aniquilado juridicamente, mas não foi aniquilado no entendimento e nos valores
das pessoas”, diz Danilivcz.
Entenda
o Apartheid
A África do Sul possui uma peculiaridade em
relação aos demais países africanos. O país foi colonizado durante desde o
século XVII por europeus de diversas nacionalidades, como alemães, holandeses e
franceses. “Durante os processos de descolonização, as elites brancas na África
regressaram a seus países de origem, Na África do Sul eles ficaram e
constituíram uma comunidade branca permanente. Logo, eles vão se entender como
brancos africanos”, explica Analúcia Danilivcz.
Arraigados ao continente
africano, estes colonos, conhecidos como afrikâners ou bôeres, chegam a entrar
em conflito com os ingleses pela posse da região, no final do século XIX. Ainda
assim, os europeus sempre foram franca minoria populacional na África do Sul,
por isto a preocupação em ter um controle estrito sobre a população negra.
“Essa minoria branca, para que pudesse se manter no poder, tinha que ter um
controle absoluto sobre a maioria negra e o controle chegou ao extremo quando o
Apartheid foi constituído e sendo aprimorado”, relata a professora de Relações
Internacionais da UFRGS.
As primeiras leis racistas
são criadas no século XIX nos territórios bôeres no interior da África do Sul,
onde estes sul-africanos de origem europeia se refugiaram da Coroa inglesa. A
legislação dispõe que negros só têm direito a, no máximo, 7,5% das terras, e os
bôeres a 92,5%.
Entre 1910 e 1961, a África
do Sul possui autonomia, apesar de ainda ser subjugada aos britânicos.
Já
durante este período, em 1948, é criado o regime do Apartheid pelo Partido
Nacional, que dá um contorno definitivo a uma série de leis de segregação que
àquela altura já existiam. Os cidadãos são classificados em quatro categorias
“brancos”, “nativos”, “mestiços” e “asiáticos”. Os negros (“nativos”) são
obrigados a viver nos “bantustões”, territórios onde moram e só saem para
trabalhar para os brancos. Os bantustões são considerados países independentes.
Uma farsa para que os sul-africanos negros não tivessem qualquer direito nas leis
da África do Sul branca, uma vez que não eram nem considerados cidadãos do
país.
“As leis de segregação
racial vêm do final do século XIX, de controle sobre a terra, sobre o trabalho.
O que acontece em 1948 é uma sofisticação dessa legislação e o controle
expresso sobre a população. Vêm como decorrência disso a impossibilidade do
negro ser proprietário de bens, de ele transitar no país livremente. São
criados os bantustões. As antigas reservas negras são transformadas em áreas
independentes, isso tudo muito relativizado, claro, porque, na verdade, eles
foram jogados nessas áreas. Os negros perdem a cidadania sul-africana, que na
verdade nunca tiveram”, conta Analúcia Danilivcz.
Segundo a pesquisadora do
Cebrafrica, o objetivo de tudo isto era, mesmo em minoria, conseguir ter o
controle sobre o trabalho dos negros. “Os brancos precisavam controlar
exclusivamente a força de trabalho. Os negros necessários ao trabalho iam ser
incorporados aos setores de produção sem nenhum direito, tinham um salário
inferior aos dos brancos que tinham a mesma atividade. E quando terminasse a
jornada tinham que ir para as áreas exclusivas dos negros”
(Fonte: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-fim-do-apartheid-ha-20-anos/19/03/2012. Acesso em: 30 de maio de 2012)
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