Desponta na Nigéria
novo modo de fazer cinema. Milhões de DVDs, pequenas salas, alternativas à
propriedade intelectual. Qualidade precária, porém crescente — e bebendo na
imensa diversidade cultural do país. O maior produtor de filmes do mundo. Um
modelo para não copiar mas, sim, para refletir.
Em texto anterior,
descrevemos as características gerais do modelo de cinema que vigora no Brasil.
Na verdade, é o mesmo que prevalece no mundo inteiro, já que as grandes
empresas de Hollywood, através da sua associação, a Motion Pictures Association
of America (MPAA), operam em escala planetária e organizam o mercado mundial em
função de seu produto. Mais de 80% dos cinemas de todo o mundo estão ocupados
com os filmes dessas empresas. Parece que, entre os mais de duzentos países do
mundo, apenas em uma meia dúzia exibe-se mais filmes nacionais que os
distribuídos por esse cartel.
Esta situação é
indispensável para o cinema que confundimos como "americano". O custo
médio de uma produção, nos EUA — não em Hollywood, mas no país todo — já é de
mais de 60 milhões de dólares. Esse padrão precisa de um mercado mundial bem
controlado para obter lucros significativos. Se é verdade que esse cinema é
dominante há décadas, apenas recentemente o faturamento dos filmes no exterior
do país passou a ser maior que internamente. Hoje, a receita proveniente de
outros países está em torno de 65% do total. Nessa mesma direção, a produção
dos EUA tem diminuído significativamente, em favor das superproduções que
melhor se adequam à exploração do mercado mundial e de seus diferentes
segmentos: salas de cinema, vídeo doméstico, tevê por assinatura e tevê aberta.
Especializa-se em filmes mais caros, que não têm concorrência, e são como
naves-mães que desovam mil subprodutos e licenças de exploração de mercados
subsidiários. Por outro lado, aumenta cada vez mais a reprodução de fórmulas
narrativas simplistas, padronizadas, o que dificulta a expressão de diferentes
formas de criação — inclusive naquele país.
Já dissemos que esse
modelo é velho. Ele luta para assimilar, domesticar e rentabilizar, em novos
formatos comerciais, os avanços tecnológicos que ocorrem fora do seu controle.
Enquanto isso, atravanca o desenvolvimento das próprias inovações e,
principalmente, limita o acesso à comunicação e impede a expressão da
diversidade das culturas do mundo.
Mas até que ponto o
poder econômico é capaz de segurar ou controlar o desenvolvimento de inovações
que apontam para uma acessibilidade fora de qualquer controle, como é o caso da
rede mundial de computadores? Ou quando outras formas de exploração comercial
se mostram lucrativas, criando novos “modelos de negócio”? Como combater
eficazmente a “pirataria” (a exploração comercial sem pagamento de licenças),
se o móvel, a ética, a ontologia mesma do comércio se concentram e se esgotam
na obtenção de lucro?
Hollywood, riquíssima,
depende da globalização. Mas é Nollywood, hoje, quem expande seu jeito de
produzir cinema pelo mundo.
Um dos objetivos desta coluna é mostrar como os cineclubes, em suas múltiplas formas, constituem a grande alternativa — ainda muito virtual, mas a mais conseqüente — para esse novo modelo. No entanto, outras experiências também merecem ser melhor conhecidas. Um exemplo muito revelador de que outros paradigmas podem ter relações muito mais legítimas com a cultura em que se estabelecem, assim como alcançar resultados econômicos extraordinários, é o de Nollywood, o modelo de indústria audiovisual da Nigéria, que se expande cada vez mais pelos países vizinhos.
A Nigéria, país com cerca de 110 milhões de habitantes, independente desde 1963, tornou-se o maior produtor mundial de títulos de filmes. Com uma produção que oscila entre 1.000 e 1.500 filmes por ano, ultrapassa largamente a Índia, segundo lugar, com cerca de metade dessa produção, e os EUA, com perto de 500 títulos anuais. Mas não apenas isso: diversas fontes situam o faturamento dessa indústria audiovisual nigeriana em cerca de 250 milhões de dólares por ano, o que também a coloca entre as maiores do mundo. Além de predominar largamente no mercado interno, a produção audiovisual nigeriana cada vez mais se estende pelos países vizinhos, antigas colônias inglesas. Chega igualmente às etnias que se estendem além das fronteiras: Gana, Quênia, Uganda, Gâmbia, Níger, Camarões, Benin, Zâmbia, Togo e mesmo o Sudão. Canais a cabo da África do Sul especializam-se ou dedicam boa parte da programação a essa produção, cobrindo vários outros territórios (Botsuana, Zimbábue, Suazilândia, Namíbia). E uma grande diáspora (7 milhões só de nigerianos) na Europa, EUA e em várias outras partes do mundo – inclusive no Brasil – também serve como elemento de repercussão e multiplicação desse cinema.
Como dissemos, não se trata do modelo hollywoodiano: os filmes são produzidos e circulam em cópias digitais (DVD) e são exibidos em pequenas salas digitais. O custo de uma produção é, em média, de 20 mil dólares. Com isso, diariamente, dois ou três novos títulos são lançados no mercado. Cada filme circula com cerca de 20 mil cópias, vendidas pelo equivalente a poucos dólares ou em salas bem simples, onde se paga ingressos de umas tantas nairas, a moeda nigeriana. Os maiores sucessos freqüentemente ultrapassam 200 mil cópias.
Filmes toscos na
forma. Mas capazes de expressar o imaginário e magia da África, e as realidades
da vida nigeriana.
O “modelo nigeriano” demonstra possibilidades concretas e potencialidades
que têm muita importância para os países que não conseguem construir uma
indústria e uma cultura cinematográfica independente. Vale a pena conhecer sua
gênese.
Em 1972, um decreto de “indigenização” passou para o controle nacional
uma rede de cerca de 300 salas de cinema que havia no país. Uma permanente
fragilidade econômica e a recorrente instabilidade política levaram à
desagregação desse circuito. A diminuição do número de cinemas, a própria
insegurança nas grandes cidades e a distância cultural da narrativa “ocidental”
em relação à vivência cultural nativa — tudo isso contribuiu para enfraquecer o
hábito de ir ao cinema. No entanto, a “nacionalização” ajudou a estimular os
talentos nigerianos, principalmente da área teatral. Mais ou menos nos anos, 80
começou a produção sempre crescente de filmes em VHS, copiados e distribuídos
precariamente nas feiras e outros eventos públicos e exibidos em salinhas
improvisadas. Como a maior parte dos empreendimentos comerciais pioneiros, o
padrão dessa produção era pobre, visando garantir um mínimo de rentabilidade. O
resultado era medíocre, em termos narrativos. Ainda é ambas as coisas.
Mas, além de se adequar ao bolso da grande maioria, essa produção
canhestra trazia a expressão do rico imaginário e das premências da vida
nacional e africana: de um lado a magia e o sobrenatural, de outro as
dificuldades da vida, a corrupção, as doenças endêmicas, o choque das tradições
tribais com a modernidade. O modelo pegou.
Hoje, ainda cheio de carências, esse sistema audiovisual não pára de
evoluir e de se consolidar. Criou, como vimos, uma sólida base econômica. Isso
tem permitido, cada vez mais, a adoção de melhores técnicas e equipamentos na
produção. A própria expansão da indústria, o enfrentamento de concorrentes, a interação
com a diáspora, obrigam a um contínuo aperfeiçoamento em termos de linguagem e
acabamento. A permanência dessa indústria gera profissionais, talentos em todos
os níveis, e inclusive já tem uma espécie de star system e uma rede de eventos
promocionais, festivais que ajudam a aprimorar seus produtos.
Na África francesa,
filmes que se contam nos dedos, premiados. Na Nigéria, uma prosa nacional
expressa, em muitos idiomas, o imaginário popular.
No entanto, talvez o
mais importante desse processo ainda em desenvolvimento seja o significado
cultural da adoção de um modelo diferente daquele implantado pelo ocupante
colonial. Em meio à mediocridade ainda prevalecente de uma narrativa banal, que
busca o êxito e o retorno econômico mais imediato, uma “prosa” nacional se
impõe, ou melhor, encontra espaço para se expressar, trazendo a vivência, os
problemas, o imaginário popular.
Nas antigas colônias
francesas, por exemplo, de uma maneira geral mantém-se inalterado o modelo de
produção e distribuição em película. Os países não têm condição de manter esse
modelo e o resultado é a produção de pouquíssimos títulos, na casa das
unidades, realizados com apoio de algumas instituições francesas. Esteticamente
são filmes muito mais significativos, que têm revelado alguns grandes
realizadores. São reconhecidos em alguns eventos internacionais, talvez a maior
parte fora da África. Esses filmes são, claro, falados em francês. Já a
produção nigeriana produziu um fenômeno inédito e absolutamente fundamental: um
percentual significativo dos filmes é realizado nos idiomas das diversas etnias
da região, principalmente em iorubá, igbo, hauçá e no pidgin nigeriano.
Sem esse espaço, essa(s) cultura(s) não teria(m) oportunidade de se
manifestar, talvez nem de sobreviver. Esboçado um novo paradigma, há muito
ainda que avançar. Mas a alternativa já se mostrou viável, abrindo a
possibilidade concreta de superação do modelo mundialmente dominante. É uma
lição importante, não exatamente a ser copiada, mas sobretudo compreendida. Por
aqui, por exemplo, onde a produção só existe com subsídio público, praticamente
não é exibida e a população não tem acesso ao cinema.
(Fonte: MACEDO,
Felipe. Disponível em: http://diplo.org.br/2008-04-24,a2345)
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