A digitalização e a internet podem transformar todo
o processo cinematográfico, democratizando a produção e multiplicando as
plateias. Mas, agarrada a seu monopólio, a indústria do audiovisual quer manter
as tecnologias superadas e a ideia de que arte é para quem pode pagar.
O cinema mudou pouco até o advento das tecnologias digitais. O som, a cor, melhoramentos nas películas, na projeção, entre muitos outros, foram aperfeiçoamentos numa tecnologia básica que se consolidou no finalzinho do século 19, na famosa sessão dos irmãos Lumière. O modelo básico de produção, de circulação e de exibição permaneceu o mesmo. Já a digitalização das imagens e sons mudou tudo. Criou um paradigma novo, em que todas as etapas do processo cinematográfico se transformam: a captação, montagem, finalização; a difusão, que já nem precisa ser física; e a exibição, que gera novos formatos, espaços, relações. Essas mudanças implicam também, é obvio, em novas bases e condições econômicas para todas as etapas.
Este período – e processo – de adaptação do paradigma de cinema, que estamos vivendo, tem curiosas similitudes com o que aconteceu na época do surgimento do cinema. Durante um tempo, não se sabia muito bem o que fazer com ele. É certo que aquilo podia dar dinheiro, mas não havia um modelo de negócio (como se diz hoje) estabelecido. Que formato deveria ter o espetáculo; como devia ser negociado, distribuído, exibido? Os primeiros vintes anos do cinema foram de formatação do produto, com o desenvolvimento da linguagem e o estabelecimento de uma narrativa adequada ao consumo. Foi um período de formação de plateias, que evoluíram das feiras e teatros de variedades para as salas fixas proletárias e finalmente para um público mais "respeitável". Foram anos de uma verdadeira guerra, para que se estabelecesse um modelo de comercialização entre produtores, distribuidores e exibidores.
Hoje há interessantes analogias com aquelas situações. As novas tecnologias criam novas possibilidades, que se tornam formatos, que necessitam de novas formas de distribuição e consumo, engendrando novos mercados, que pedem novos modelos de comercialização. E quanto isto estará mexendo com a linguagem?
O fato é que essa etapa de grandes transformações está estruturada em um modelo. Um modelo que não é muito duradouro, que ainda não tem regras estáveis – apenas entendimentos comerciais mais ou menos provisórios. Uma situação que procura segurança, tão cara aos grandes negócios, mas que de momento trava batalhas complexas e violentas pela repartição dos mercados. Uma realidade que, para a quase totalidade da população e para os produtores e realizadores audiovisuais, é elitista, excludente, unilateral e concentradora.
Retratos da exclusão atual: mais de 60% dos jovens
entre 15 e 29 anos nunca foram ao cinema. E 92% dos municípios não têm sequer
uma sala.
Há trinta anos, o Brasil tinha pouco mais da metade da população de hoje e pouco menos de 5 mil salas de cinema. O número de espectadores, por ano, andava em torno de 300 milhões. Nos anos 70 e 80, o modelo foi se transformando, de um cinema barato e popular para o figurino atual. Houve um período de crise aguda, quando o número de salas caiu para cerca de 900 e o público para quase 70 milhões anuais. Foi o fim dos cinemas na grande maioria das cidades e o desaparecimento dos cinemas de bairro.
Depois de uma “recuperação”, sob o novo modelo de consumo de elite, nos multiplexes de xópins, o número de salas chegou a 2.200. No entanto, essas salas são bem menores que as daquele tempo não tão distante (que tinham 500 lugares ou mais) e fica a dúvida de se houve efetivamente um aumento do número de assentos oferecidos. Porque o público cresceu pouco, e tem rondado em torno de 90 milhões de espectadores anuais.
O senso comum diagnostica rapidamente: “é por causa do vídeo, do DVD, da TV a cabo, da banda larga”. No entanto, nos países onde há mais acesso a todos esses recursos audiovisuais, o cinema apresenta números muito mais significativos. Nos EUA, são quase 40 mil salas de cinema. Mesmo no México, com condições mais parecidas e a metade da nossa população, o número de salas de cinema é 40% maior.
Em outras palavras, segundo dados de uma distribuidora estadunidense, mais ou menos 10% da população “vai pelo menos uma vez por ano ao cinema”. Ou seja, 90% não vão nunca. Mais de 60% dos jovens entre 15 e 29 anos, nunca foram ao cinema. Outro corte: 92% dos municípios brasileiros não têm sala de cinema. Aliás, quase a metade dos cinemas (48%) está concentrada nos estados de São Paulo e Rio. Sergipe, com 75 municípios, só tem cinemas em Aracaju; de fato, 17 estados brasileiros têm 15% das salas de cinema do País.
O cinema plural, mundial, é exibido numa rede
minúscula, de menos de uma dezena de cidades brasileiras, que contam com um bom
“circuito de arte”.
Do lado da produção, o Brasil hoje faz quase 70 filmes de longa metragem por ano. No entanto, pelo menos 30% desses filmes simplesmente não são exibidos. Dos que conseguem chegar aos cinemas, quase todos são exibidos em situações muito precárias – de salas, datas – raramente atingindo números minimamente significativos. Explicando melhor: os filmes brasileiros ocupam cerca de 10% do mercado de exibição, ou seja, atingem em torno de 9 milhões de espectadores por ano. Desse público, uns dois terços concentra-se em dois ou três filmes (geralmente os que têm participação financeira de distribuidoras hollywoodianas, ou estão associados a empresas de comunicação), conforme o ano. E os outros 30, 40 filmes “partilham” o restante do público. Resumindo: 10% de um mercado que mal atinge 10% da população, significa que o cinema nacional se relaciona com menos de 1% dos brasileiros.
Que não se confunda esta constatação com uma forma qualquer de xenofobia. O cinema mundial — quer dizer, europeu, asiático, latino-americano, e mesmo o dos Estados Unidos, quando não é produto das corporações daquele bairro famoso de Los Angeles — enfrenta uma situação ainda pior. Na verdade é o concorrente, por excelência, do cinema brasileiro na mesma estreita faixa de 10% do mercado. O cinema plural, mundial, é geralmente exibido num circuito ainda mais limitado, de menos de uma dezena de cidades brasileiras, que contam com um bom “circuito de arte”. No ano passado, durante várias semanas, dois títulos apenas ocuparam mais de 70% de todas as salas do País. Logo em seguida esse número passou para três títulos, em cerca de 80% dos cinemas. Ou seja, mesmo com uma arquitetura multiplex, a exibição é cada vez mais simplex, concentrada. Hoje entra no Brasil um terço do número de filmes que vinha nos anos 80, inclusive norte-americanos. E 85% das bilheterias de cinema no Brasil estão concentrados em três distribuidoras de Hollywood.
As tecnologias digitais, associadas aos recursos propiciados pela internet, criam condições para uma democratização muito grande da produção. A distribuição elimina as cópias em película — que custam milhares de reais cada uma — e a própria instalação de salas e equipamentos de projeção diminuem muito de custo. Tudo aponta para a oportunidade e a necessidade de um modelo de circulação dos produtos audiovisuais em bases diferentes das atuais e, principalmente, com ingressos a preços compatíveis com o poder aquisitivo da população. É como um novo parto do cinema, na virada de outro século.
No entanto, na transição de paradigmas, a chamada indústria do audiovisual tem procurado garantir um controle exclusivo do processo, garantindo suas “margens” através da manutenção de tecnologias superadas, pela restrição do acesso e com a preservação de uma situação geral de monopólio. Desta forma, o modelo não serve para o público, não atende às necessidades dos realizadores e impede uma verdadeira integração cultural com o mundo.
(Fonte: MACEDO, Felipe. Disponível em:http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=2619)
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