Até hoje é impossível saber precisamente o número de mortes
causado pelo acidente nuclear.
O acidente no reator nuclear de Chernobyl, ocorrido em
26 de abril 1986, foi o mais severo da indústria de geração elétrica nuclear. O
reator foi destruído no acidente e uma quantidade considerável de material
radioativo foi liberada para o meio ambiente. O acidente causou a morte, dentro
de algumas semanas, de 30 trabalhadores e ferimentos de radiação a mais de uma
centena de outros.
Em resposta, as autoridades evacuaram, em 1986, cerca de 115.000 pessoas de áreas em torno do reator e, posteriormente, cerca de 220 mil pessoas de Belarus, da Rússia e da Ucrânia foram reassentadas.
O acidente provocou rupturas sociais e psicológicas graves nas vidas dessas pessoas afetadas e grandes perdas econômicas em toda a região. Grandes áreas dos três países foram contaminadas com materiais radioativos e pequenas quantidades de radionuclídeos foram detectadas em todos os países do hemisfério norte.
À época do acidente, especialistas previram até 40.000 mortes por cânceres decorrentes da radiação liberada para as regiões afetadas. Recentemente o 27 º aniversário do desastre foi lembrado, cabendo a questão: quantas pessoas realmente morreram devido à radiação de Chernobyl até agora?
Nós provavelmente nunca saberemos exatamente. Isso se deve, em parte, ao fato que 40.000 mortes por câncer são menos de 1% da mortalidade por câncer esperada na população afetada, independentemente do acidente. Essas mortes são indetectáveis por estudos epidemiológicos. Mesmo que não fossem, a ciência não poderia dizer se um tipo específico de câncer foi induzido pela radiação ou por qualquer outra causa.
Uma exceção é o câncer de tireoide, doença muito rara em crianças, cujo número de casos disparou para quase 7.000 na Belarus, Rússia e Ucrânia desde o acidente até 2005. Não há dúvida de que a radioatividade de Chernobyl foi causa desses casos de câncer, que levaram a cerca de uma dezena de mortes. Também sabemos que duas pessoas morreram no momento da explosão do reator e mais de 100 pessoas, a maioria bombeiros que desconheciam os perigos a que estavam expostos, receberam doses altas o suficiente para causar a síndrome de radiação aguda. Destes, 29 morreram dentro de poucos meses após o acidente, seguidos de mais 18 mortes ao longo dos anos, quase todos por leucemia.
Para além desses tristes casos, exacerbadas controvérsias sobre o número de mortes de Chernobyl persistem. O fato concreto é que para a grande maioria das populações mais afetadas, o desastre causou doses de radiação equivalentes a algumas tomografias computadorizadas. A níveis tão baixos, os efeitos da radiação sobre a saúde, se ocorrerem, são em longo prazo e essencialmente aleatórios.
Como o decaimento atômico que gera a radiação é impossível de ser previsto para um átomo individual, os efeitos da radiação sobre a saúde são também aleatórios. Uma determinada pessoa que viveu na zona de afetada pode ou não possuir, por exemplo, um átomo de césio-137 que está em silêncio imitando o potássio em alguma célula do corpo. O átomo pode ou não liberar radiação que venha atingir o DNA e transforma-lo de tal forma que possa levar ao câncer.
As previsões de mortalidade por câncer de Chernobyl são baseadas em fórmulas derivadas de estudos de populações japonesas sobreviventes das bombas de Hiroshima e Nagazaki, submetidas a doses muito mais elevadas. As fórmulas tomam a quantidade total de radiação liberada pelo desastre de Chernobyl, distribuem-na como dose por toda a população afetada, e multiplicam esse valor por um fator de risco, extrapolado desses estudos, para chegar a um número de mortes.
Os especialistas divergem nos fatores de risco utilizados, mas todas as fórmulas assumem que os efeitos para a saúde em longo prazo, principalmente ocorrência de leucemia, que é o câncer mais comumente causado pela radiação, são diretamente proporcionais à dose. Os especialistas também divergem quanto à existência ou não de um limiar de dose mínima abaixo da qual não ocorrem mais efeitos e, em existindo, qual seria seu valor.
Os verdadeiros efeitos sobre a saúde da radiação a baixo nível de dose não podem ser exatamente conhecidos, porque qualquer estudo para identificá-los teria que incluir um número incrivelmente grande de pessoas. Além disso, não é claro que os efeitos da intensa exposição à radiação imediatamente após as explosões de armas nucleares representem os mesmos perigos das baixas, mas crônicas, doses decorrentes de Chernobyl.
Existem inúmeras evidências científicas de que os mecanismos de reparação celular podem compensar as doses mais baixas de exposição. Isso explica porque não foi detectado o aumento previsto para casos de leucemia nas populações expostas à nuvem radioativa de Chernobyl.
Dada todas as incertezas, as estimativas atuais do número de mortes causadas por Chernobyl são muito diferentes das 40.000 inicialmente previstas. Em 2005, o Comitê Científico sobre Efeitos da Radiação Atômica da Organização das Nações Unidas (UNSCEAR) estimou a ocorrência de 4.000 mortes, ainda considerando a hipótese linear sem limiar para a relação dose-efeito, mas atualizando os fatores de risco de acordo com os avanços científicos na área.
Três anos mais tarde, no seu relatório de 2008, o Comitê passou a adotar como limite mínimo a dose equivalente a quatro tomografias computadorizadas abdominais, devido a incertezas inaceitáveis para essa faixa de doses tão baixa. Isso fez com que a previsão de número de mortes fosse ainda mais reduzida. Os críticos, tais como Greenpeace, responderam com novas previsões de 93 mil mortes por câncer causadas por Chernobyl.
Na realidade, as diferenças nos números decorrem das hipóteses de cálculo adotadas para a relação dose-efeito: o Comitê da ONU passou a adotar a hipótese linear com limite mínimo, pois após décadas de estudos, nunca se conseguiu encontrar evidências científicas de que existam realmente efeitos para doses muito baixas.
Os militantes antinucleares rejeitam esse fato e continuam fazendo cálculos com a hipótese de inexistência de limite e fatores de risco superdimensionados, em que pesem as inúmeras evidências contrárias, demostradas pela medicina nuclear e pelos estudos epidemiológicos, particularmente em regiões com altos níveis de radiação natural, como é o caso brasileiro das praias de areias monazíticas ao sul do Espírito Santo.
Na verdade, trata-se da discussão de princípios epistemológicos: a partir de que ponto a ausência de evidência pode ser assumida na prática como evidência de ausência? Em outras palavras, pode-se provar cientificamente que algo existe, mas é praticamente impossível provar que algo não existe. Enquanto isso, a discussão continua a se prestar aos mais variados vieses da subjetividade e dos interesses humanos.
Leonam dos Santos Guimarães é doutor em engenharia e membro do Grupo Permanente de Assessoria em Energia Nuclear do Diretor-Geral da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica).
Em resposta, as autoridades evacuaram, em 1986, cerca de 115.000 pessoas de áreas em torno do reator e, posteriormente, cerca de 220 mil pessoas de Belarus, da Rússia e da Ucrânia foram reassentadas.
O acidente provocou rupturas sociais e psicológicas graves nas vidas dessas pessoas afetadas e grandes perdas econômicas em toda a região. Grandes áreas dos três países foram contaminadas com materiais radioativos e pequenas quantidades de radionuclídeos foram detectadas em todos os países do hemisfério norte.
À época do acidente, especialistas previram até 40.000 mortes por cânceres decorrentes da radiação liberada para as regiões afetadas. Recentemente o 27 º aniversário do desastre foi lembrado, cabendo a questão: quantas pessoas realmente morreram devido à radiação de Chernobyl até agora?
Nós provavelmente nunca saberemos exatamente. Isso se deve, em parte, ao fato que 40.000 mortes por câncer são menos de 1% da mortalidade por câncer esperada na população afetada, independentemente do acidente. Essas mortes são indetectáveis por estudos epidemiológicos. Mesmo que não fossem, a ciência não poderia dizer se um tipo específico de câncer foi induzido pela radiação ou por qualquer outra causa.
Uma exceção é o câncer de tireoide, doença muito rara em crianças, cujo número de casos disparou para quase 7.000 na Belarus, Rússia e Ucrânia desde o acidente até 2005. Não há dúvida de que a radioatividade de Chernobyl foi causa desses casos de câncer, que levaram a cerca de uma dezena de mortes. Também sabemos que duas pessoas morreram no momento da explosão do reator e mais de 100 pessoas, a maioria bombeiros que desconheciam os perigos a que estavam expostos, receberam doses altas o suficiente para causar a síndrome de radiação aguda. Destes, 29 morreram dentro de poucos meses após o acidente, seguidos de mais 18 mortes ao longo dos anos, quase todos por leucemia.
Para além desses tristes casos, exacerbadas controvérsias sobre o número de mortes de Chernobyl persistem. O fato concreto é que para a grande maioria das populações mais afetadas, o desastre causou doses de radiação equivalentes a algumas tomografias computadorizadas. A níveis tão baixos, os efeitos da radiação sobre a saúde, se ocorrerem, são em longo prazo e essencialmente aleatórios.
Como o decaimento atômico que gera a radiação é impossível de ser previsto para um átomo individual, os efeitos da radiação sobre a saúde são também aleatórios. Uma determinada pessoa que viveu na zona de afetada pode ou não possuir, por exemplo, um átomo de césio-137 que está em silêncio imitando o potássio em alguma célula do corpo. O átomo pode ou não liberar radiação que venha atingir o DNA e transforma-lo de tal forma que possa levar ao câncer.
As previsões de mortalidade por câncer de Chernobyl são baseadas em fórmulas derivadas de estudos de populações japonesas sobreviventes das bombas de Hiroshima e Nagazaki, submetidas a doses muito mais elevadas. As fórmulas tomam a quantidade total de radiação liberada pelo desastre de Chernobyl, distribuem-na como dose por toda a população afetada, e multiplicam esse valor por um fator de risco, extrapolado desses estudos, para chegar a um número de mortes.
Os especialistas divergem nos fatores de risco utilizados, mas todas as fórmulas assumem que os efeitos para a saúde em longo prazo, principalmente ocorrência de leucemia, que é o câncer mais comumente causado pela radiação, são diretamente proporcionais à dose. Os especialistas também divergem quanto à existência ou não de um limiar de dose mínima abaixo da qual não ocorrem mais efeitos e, em existindo, qual seria seu valor.
Os verdadeiros efeitos sobre a saúde da radiação a baixo nível de dose não podem ser exatamente conhecidos, porque qualquer estudo para identificá-los teria que incluir um número incrivelmente grande de pessoas. Além disso, não é claro que os efeitos da intensa exposição à radiação imediatamente após as explosões de armas nucleares representem os mesmos perigos das baixas, mas crônicas, doses decorrentes de Chernobyl.
Existem inúmeras evidências científicas de que os mecanismos de reparação celular podem compensar as doses mais baixas de exposição. Isso explica porque não foi detectado o aumento previsto para casos de leucemia nas populações expostas à nuvem radioativa de Chernobyl.
Dada todas as incertezas, as estimativas atuais do número de mortes causadas por Chernobyl são muito diferentes das 40.000 inicialmente previstas. Em 2005, o Comitê Científico sobre Efeitos da Radiação Atômica da Organização das Nações Unidas (UNSCEAR) estimou a ocorrência de 4.000 mortes, ainda considerando a hipótese linear sem limiar para a relação dose-efeito, mas atualizando os fatores de risco de acordo com os avanços científicos na área.
Três anos mais tarde, no seu relatório de 2008, o Comitê passou a adotar como limite mínimo a dose equivalente a quatro tomografias computadorizadas abdominais, devido a incertezas inaceitáveis para essa faixa de doses tão baixa. Isso fez com que a previsão de número de mortes fosse ainda mais reduzida. Os críticos, tais como Greenpeace, responderam com novas previsões de 93 mil mortes por câncer causadas por Chernobyl.
Na realidade, as diferenças nos números decorrem das hipóteses de cálculo adotadas para a relação dose-efeito: o Comitê da ONU passou a adotar a hipótese linear com limite mínimo, pois após décadas de estudos, nunca se conseguiu encontrar evidências científicas de que existam realmente efeitos para doses muito baixas.
Os militantes antinucleares rejeitam esse fato e continuam fazendo cálculos com a hipótese de inexistência de limite e fatores de risco superdimensionados, em que pesem as inúmeras evidências contrárias, demostradas pela medicina nuclear e pelos estudos epidemiológicos, particularmente em regiões com altos níveis de radiação natural, como é o caso brasileiro das praias de areias monazíticas ao sul do Espírito Santo.
Na verdade, trata-se da discussão de princípios epistemológicos: a partir de que ponto a ausência de evidência pode ser assumida na prática como evidência de ausência? Em outras palavras, pode-se provar cientificamente que algo existe, mas é praticamente impossível provar que algo não existe. Enquanto isso, a discussão continua a se prestar aos mais variados vieses da subjetividade e dos interesses humanos.
Leonam dos Santos Guimarães é doutor em engenharia e membro do Grupo Permanente de Assessoria em Energia Nuclear do Diretor-Geral da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica).
(Fonte: Opera Mundi)
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