Na França, o país em que os
trabalhadores são acusados de responsáveis pelo desemprego estrutural reinante,
o cinema desnuda toda mazela.
(Créditos da foto: Reprodução/La loi du marché)
A tirania do mercado atinge sempre os
mais fracos. Ela torna o trabalho cada vez mais precário e gera desemprego,
sofrimento e miséria social. Na França, os trabalhadores são acusados de
responsáveis pelo desemprego estrutural que mina a sociedade há 40 anos. Por
isso, são alvo da batalha dos empresários para "reformar" as leis que
garantem proteção social, prometendo a "modernização" do mercado.
Na realidade, essas reformas também chamadas de
"flexibilização" podem levar ao fim de alguns dos direitos adquiridos
nas lutas sociais do século passado. A ex-presidente do Medef (associação
patronal francesa), Laurence Parisot teve a desfaçatez de dizer: "A vida,
a saúde e o amor são precários. Por que o trabalho escaparia a essa lei?". Prêmio de melhor ator em Cannes, Vincent
Lindon encarna em La loi du marché (A Lei do Mercado), do cineasta Stéphane Brizé, um homem que vive a angústia
do desemprego e a dificuldade de reencontrar um lugar num mercado cada vez mais
estreito. A palma de ouro do ator, que contracena com atores não profissionais,
desencadeou um sucesso estrondoso logo depois do lançamento do filme, não
apenas pelo prêmio em si mas pela prodigiosa interpretação de Lindon e pelo
tema, uma ferida aberta na sociedade francesa.
O impacto do filme foi tão grande que o
primeiro número da nova fase editorial do jornalLibération, de 1° de junho, tinha a foto de Lindon numa cena do filme e
o título Le chômage superstar - o desemprego superstar.
O filme projeta na ficção o principal problema
econômico da França, que convive com o desemprego crônico (quase 11% de
desempregados), responsável por uma provável derrota dos socialistas em 2017,
se as políticas postas em prática por François Hollande se mostrarem incapazes
de reverter a curva sempre ascendente. Quando, finalmente, se vê em novo
trabalho, o personagem é confrontado a uma realidade de controle e
suspeitas.
No mundo do trabalho, lá onde os mais
vulneráveis ganham o pão de cada dia, há mais sofrimento e suicídios do que
podem supor os adoradores do deus mercado. Os desempregados, ainda protegidos
na França por alguns meses de auxílio desemprego, são muitas vezes vistos como
culpados pelo fato de não terem trabalho.
Emmanuelle Bercot, que ganhou em Cannes o prêmio
de melhor atriz pelo filme Mon roi(Meu Rei), da cineasta Maïwenn, abriu o festival como
diretora do filme La tête haute (De
Cabeça Erguida), que
retraça o percurso de um adolescente à deriva, num país que ainda vê os jovens
delinquentes como seres humanos em perigo e não como monstros perigosos. No
filme, Catherine Deneuve é a juíza de menores que tenta salvar Malony (o
extraordinário Rod Paradot, descoberto numa escola profissional de formação de
marceneiros) da prisão e da delinquência.
A atriz e o jovem Paradot vivem tensos
momentos de confronto: Deneuve representando a Lei e o Estado, e o jovem
adolescente, fruto de uma mãe totalmente desestruturada, incapaz de educar dois
filhos. O que se vê no filme é que a presença do Estado, com uma estrutura de
educadores e profissionais especializados para receber jovens em dificuldade,
pode ser decisiva. Enquanto isso, no Brasil, elaboram-se leis para diminuir a
responsabilidade penal e jogar menores na prisão, depósito de seres humanos
considerados bestas selvagens.
Catherine Deneuve contou em entrevista
que foi assistir no tribunal a julgamentos de menores para conhecer como
funciona o juizado. O que viu deixou-a orgulhosa de seu país:
"Fiquei impressionada com o tempo de escuta,
com a atenção que eles recebem. Constatei que vivemos em uma verdadeira
democracia".
Não se trata de uma visão edulcorada da realidade.
Um Estado democrático que leva em conta a educação de seus cidadãos pode montar
estruturas sócio-educativas para salvar jovens que, sem elas, seriam condenados
à prisão e ao banditismo.
Quanto ao filme La ligne de couleur, da cineasta Laurence Petit-Jouvet, ele desnuda outro
problema que gangrena a sociedade francesa: o racismo. Os personagens reais que
ilustram o documentário, que será lançado nos cinemas dia 17 de junho, são
franceses, nasceram no país da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas
carregam todos um defeito: não são brancos. Têm a pele morena ou negra, os
olhos puxados de uma origem asiática e, muitas vezes, têm nomes que lembram as
origens distantes dos pais ou avós.
Esses franceses não se sentem plenamente aceitos.
Cada um deles conta uma história de quem tem que travar uma luta muitas vezes
dura para ocupar um espaço na sociedade francesa que trouxe do passado colonial
uma herança multiétnica mas que ainda não se convenceu que todos os habitantes do
país não são descendentes dos gauleses.
Alguns podem ser alvo de controle de
identidade por policiais, diversas vezes por dia, até mesmo com certa
brutalidade, simplesmente pelo fato de serem negros ou mulatos. Um deles diz
uma frase choque para mostrar a dificuldade de encontrar um emprego quando se
tem um nome de origem estrangeira, mesmo com curso universitário no currículo:
"a França é o país que tem os vigias mais diplomados do planeta".
(Fonte: Leneide Duarte-Plon, de Paris)