‘Depois de maio’ (2012), filme dirigido por Olivier Assayas, procura
apresentar a trajetória de uma miríade de jovens franceses três anos após a
tormenta de maio de 68. A contracultura já disputa a hegemonia com os valores
tradicionais de modo acirrado. - Flávio Ricardo Vassoler. (Fonte da
imagem: Ne10 - Uol
“Após a revolução,
resta o problema dos revolucionários”. Tal máxima (cínica) atribuída ao ditador
fascista Benito Mussolini ressoa as contradições pelas quais passam os
movimentos revolucionários que conseguiram chegar ao poder. Nesse momento, a
acepção etimológica da palavra revolução vem à tona: revolução, o movimento que
se volta contra si mesmo. A manutenção do poder pressupõe um refreamento do
ímpeto contestatório. Benito Mussolini, leitor de Nicolau Maquiavel, sentencia
que, da tomada para a manutenção do poder, a revolução se transforma em
Realpolitik.
O que teria
acontecido ‘Depois de maio’ (2012)? O filme dirigido por Olivier Assayas
procura apresentar a trajetória de uma miríade de jovens franceses três anos
após a tormenta de maio de 68. A contracultura já disputa a hegemonia com os
valores tradicionais de modo acirrado. Os revolucionários dos mais diversos
matizes – desde os hippies pacifistas até os incendiários Molotov – vivem em
suas comunidades alternativas e começam a influenciar sobremaneira a mutação
dos valores e práticas ossificados. A princípio, a contracultura de fato parece
ter revelado que há sempre praias sob os pisos bem encerados dos shoppings.
Crescei e multiplicai-vos: o nudismo e o poliamor fazem com que os amantes usem
alianças, simultaneamente, nos anelares esquerdos e direitos. Os cabelos longos
e as barbas por fazer já não se preocupam com as entrevistas de emprego.
“Estamos ébrios de revolução!” A psicodelia parece romper com o tempo da rotina
estrita e heterônoma, o tempo do trabalho. Mas mesmo maio de 68 teve que
encarar o dia 1º de junho: segunda-feira.
O que acontece
quando os gritos de ordem espraiados pelas ruas de Paris começam a se
transformar em pichações cada vez mais silenciosas? Pichações que precisam ser
feitas na calada da noite, uma vez que um espectro ronda a Europa depois de
maio, o espectro da polícia. O poliamor e os brados por mais liberdade sexual
de fato promoveram uma profunda transvaloração dos costumes em vastas camadas
da sociedade ocidental. Mas seria possível entrever uma arregimentação da
poligamia pelas atuais casas de swing? Sexo grupal entre quatro paredes com
hora, local e preço para acontecer. O swing dá sobrevida à agonizante relação
monogâmica.
O que acontece
quando a criatividade psicodélica de ontem começa a municiar a indústria
publicitária depois de maio? A contracultura começa a se tornar cotidiana. (O
cotidiano, vale lembrar, não foi tomado de assalto pela revolução.) A
contracultura começa a se tornar a cultura que dita contra o que os cidadãos
devem se postar. Os cálculos de rentabilidade do capital percebem que a
contracultura estimula a produtividade dos funcionários que já não precisam
vestir gravata e das funcionárias que, vez por outra, nas sextas-feiras, podem
descortinar as pernas. O horário de trabalho flexível – faça sua rotina! –
remove a figura exterior do ponto que deve ser batido, respectivamente, às 8h e
às 18h, para transferir o princípio de coação do horário para dentro de nossas
cabeças. O home office transporta o trabalho para dentro de casa, traz a
premência do relatório para a escrivaninha ao lado da cama, sonhamos com as
planilhas e os planos de meta. Depois de maio, o pesadelo.
Maio de 68 entoou
com novos cânticos o mantra “Louvado seja Deus”: o LSD de fato elevou Hosana às
alturas. Jesus Cristo, mais um barbudo esquálido no acampamento de Janis
Joplin. Depois de maio, a psicodelia lisérgica dá lugar à felicidade prescrita
diariamente por 5 mg de Prozac. Quando a revolução começa a se confundir com a
Realpolitik; quando a depressão passa a ser o sintoma socialmente prescrito, ou
pior, administrado, Janis Joplin já ocupa o ranking do videoclipe mais badalado
pelos espectadores da MTV.
Que fazem os jovens
franceses depois de maio? (Na periferia brasileira do capitalismo, não há
dúvidas: em 1968, o Ato Institucional nº 5 decreta que lugar de estudante de
classe média é na escola e na universidade; apenas os militares podem exorbitar
a lógica dos quartéis.) Os jovens não sabem o que fazer. Como maio via de regra
dá lugar a junho, a revolução ainda não conseguiu descobrir a poção de Peter
Pan: os jovens terão que trabalhar. Karl Marx terá que aparar a barba,
Friedrich Engels voltará a administrar suas empresas. Mas a dor não é
facilmente extirpável: para os jovens que efetivamente viveram o prenúncio de
uma sociedade reorganizada sobre bases radicalmente outras, a impossibilidade
de prosseguir com o ímpeto de maio leva às últimas consequências as mais
diversas rupturas. O suicídio tenta cristalizar um passado que já não se pode
resgatar – passado que o LSD diz escorrer entre os dedos. As ações
revolucionárias – roubos a banco, sequestros e que tais – municiam a propaganda
anti e contrarrevolucionária para que o pater familias e a dona de casa
continuem a fazer o Pelo Sinal antes do jantar. O mercado de trabalho, ao fim e
ao cabo, apresenta-se como o corredor polonês depois de maio.
Quando a
contracultura é apropriada pela reação e passa a rechaçar a revolução – ou
pior, quando a revolução transforma-se em espetáculo –, os jovens mais lúdicos
encontram fileiras nos bastidores circenses dos filmes de Federico Fellinni; os
menos aquinhoados buscam trabalho no entretenimento autoritário de Hollywood;
ao fim e ao cabo, os mais pragmáticos endossam o exército publicitário. Os
aforismos de outrora viram slogans depois de maio. Nesse sentido, o diretor
Olivier Assayas soube captar com a argúcia a nostalgia de Pasárgada: a
revolução que poderia ter sido, mas não foi lega cicatrizes e cooptações aos
outrora revolucionários que agora precisam continuar a continuar.
(Fonte: Carta Maior, Flávio Ricardo Vassoler)
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