"O amante da Rainha", de Nicolaj Arcel. (Fonte: CineClick)
Indicado ao Oscar 2013 e premiado
no Festival de Berlim, o drama histórico dinamarquês ‘O Amante da Rainha’ conta
a história de Struensee, o homem que introduziu a liberdade de imprensa, aboliu
a tortura e organizou a proteção aos mais pobres em seu país décadas antes da
revolução francesa. O artigo é de Ladislau Dowbor.
Um belo filme, O Amante da Rainha. No original dinamarquês, En Kongelig
Affaere, soa um pouco mais sério. Em inglês traduziram como A Royal Affair,
fiel ao original, mantendo o cunho político, mas jogando com o duplo sentido,
de um caso político e de um “caso” de cama. Na nossa versão, sempre puxando
para “aquele” lado, fomos mais explícitos: um dos principais transformadores
políticos europeus, Struensee, que introduziu a liberdade de imprensa, aboliu a
tortura e organizou a proteção aos mais pobres, isto décadas antes da revolução
francesa, virou simplesmente “o amante da rainha”. Desde o papa Alexandre VI na
devassa Roma, até o caso da cunhada no Brasil, passando pelo diretor do FMI que
despencou da sua posição de presidenciável da França, o que importa realmente é
a política vista pelo buraco da fechadura. Até na nossa mais alta corte de
justiça, as pessoas devem lembrar, os julgamentos importantes para o país foram
paralisados durante quase um ano pela discussão sobre se os membros femininos
poderiam ou não se apresentar com calças, em vez do tradicional vestido. Muito
importante. Perturbaria a serenidade dos supremos.
Temos aqui sólidas tradições. O governo do país mais importante do mundo se viu
paralisado durante anos com a discussão, de alto teor ético, sobre se o
presidente teve ou não um caso com a secretária. Um terço do PIB mundial está
em paraísos fiscais, dinheiro de evasão fiscal, venda de armas, lucro de
drogas, corrupção política e privada. Não é essencial. No planeta onde morrem
anualmente 11 milhões de crianças por falta de assistência – e 11 milhões não é
uma cifra, significa 11 milhões de vezes sofrimentos da criança e dos pais ao
ver uma criança morrendo – o mais importante, naturalmente, era se o Presidente
se deixou ou não seduzir pela secretária. O governo, o senado, a grande mídia,
discutindo durante anos um assunto de alta relevância: comeu? Comeu mas não
gozou, como foi amplamente discutido? Alta política.
Struensee, pela posição de influência junto ao rei da Dinamarca, introduziu
durante um ano (essencialmente 1771) as reformas seguintes, entre outras:
abolição da tortura, abolição do trabalho servil, abolição da censura de
imprensa, abolição dos privilégios da nobreza, abolição da escravidão nas
colônias dinamarquesas, criminalização das propinas, criação de estoques
governamentais de grãos para cobrir anos de penúria e reduzir especulação com
preços, reforma universitária, reforma da saúde pública, reforma agrária. Neste
ano, foram 1069 decretos e leis, que constituem a raiz da modernidade
democrática de hoje. O amante da rainha…
A jovem britânica Carolina Matilde da Grã-Bretanha se casa com o insano rei Christiano 7º, tornando-se rainha da Dinamarca, mas logo se envolve com o médico da corte. Os dois começam a propor reformas que acabam mudando uma nação em "O Amante da Rainha", de Nikolaj Arcel. O filme saiu do Festival de Berlim 2012 com os prêmios de melhor ator e de roteiro e é o candidato dinamarquês a uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro. - (Fonte: Uol)
Os privilegiados não perdoam. Organizaram um golpe. Mas pessoas éticas organizam golpes com forte fachada legal e ética. Prenderam o Struensee, e em seguida o julgaram (o julgamento não aparece no filme), e o condenaram à morte com todas as formalidades. Em seguida formaram um gabinete que devolveu aos nobres e à igreja os velhos privilégios, inclusive a prática da tortura. Felizmente, o herdeiro Frederick, atingindo a maioridade, e com a autoridade de soberano, reconstituiria mais tarde o essencial da herança de Struensee, gerando boa parte da democracia e liberdade que hoje conhecemos nesta região da Europa. Mataram o pai, mas a semente brotou.
Voltando ao assunto mais importante, o da cama. Para o golpe, foi feita intensa mobilização popular, com imensa campanha que aproveitou a liberdade de imprensa introduzida pelo próprio Struensee. Como não dava para atacar a sua política democrática, muito popular, fizeram intensa campanha, que não deixou nada a desejar ao que seria a campanha da direita contra Clinton, indo ao ponto essencial: ele comeu a rainha. Comeu a Nossa rainha! Um crime abominável. Deixou-se dominar por tendências criminosas, de lesa-majestade, por não resistir ao charme da rainha então de 20 anos. Para punir o amor, estes mestres da ética mostraram a sua dignidade.
Separaram os filhos da rainha, que foi exilada, deixando-a morrer solitária aos 23 anos de idade. Quanto a Struensee, foi decapitado, mas antes torturado, e também, coisa que não aparece por razões óbvias no filme, teve antes as mãos decepadas, e depois foi publicamente destripado. Em nome da ética. A parte da população que aderiu ao show sanguinário uivava de excitação. O amor infame estava punido. A restituição dos privilégios da nobreza foi tratada em gabinete, de maneira mais discreta. A chave da política, da política sem-vergonha, está no buraco da fechadura. Como diz a minha amiga Monika, o buraco da fechadura é o novo “circo para o povo”, enquanto nos bastidores a Política segue o seu rumo.