(Animação
da dupla estadunidense Phil Lord/Chris Miller discute as consequências do mau
uso da ciência e a ganância dos poderosos em filme sobre o consumismo e o
descontrole da produção de alimentos.)
Tá chovendo Hambúrguer - Imagem: Blogs Pop.
Ninguém pode negar que os desenhos animados encantam. Não apenas pelas engenhosas histórias, mas, principalmente, pelos personagens que se metem em todo tipo de trapalhada. Muitas delas fantásticas, já que o gênero permite as mais variadas licenças dramatúrgicas. Em “Tá Chovendo Hamburger”, experiência em 3D da dupla de roteiristas e diretores Phil Lord e Chris Miller, essa liberdade mistura ação, aventura e ficção científica, para contar a história do aparvalhado jovem cientista Flint Lockwood (voz de Bill Hader), interessado em fantásticas invenções para justificar suas ambições. Como nas tramas dos cientistas malucos, nada que ele inventa dá certo, e termina por torná-lo motivo de chacota na pequena ilha Boca Grande, perdida no Atlântico Norte. Até que consegue transformar água em comida, usando alta concentração de energia.
Mas, ao contrário do que se imagina, o filme não discute a fome que acomete a população dos países pobres. É mais uma observação sobre o desmesurado consumismo das sociedades afluentes. Boca Grande, a Chewandswallow, criada pelos escritores Judi e Ron Barrett, vive da pesca de sardinha. Todas suas atividades, brinquedos, cartões, pratos típicos e roteiros turísticos giram em torno dela. O invento de Flint gera nova fonte de renda, atraindo milhares de turistas para o desfrute do prefeito Shelbourn (Bruce Campbell). E assume tal dimensão que a TV envia a repórter estagiária Sam Sparks (Anna Farris) à ilha, para transmissões ao vivo sobre ele e sua criação. Mas também provoca mudanças substanciais em suas relações com o pai Tim Lockwood (James Caan), ganha o carinho do policial negro Earl (Mr.T), que vivia advertindo-o sobre suas trapalhadas, e a atenção amorosa da própria Sparks.
Invento muda perfil econômico da ilha
Se fizer chover sopa e nevar purê de batata já era feito extraordinário, que dirá mudar o perfil econômico da ilha, em si decadente. Ao fazê-lo, gera em Shelbourn ambições incontroláveis. Ele quer sempre mais, pois Boca Grande, com suas sardinhas, já não lhe rende o sucesso esperado. Exige de Flint o “estado de chuva de hambúrguer permanente”, para que possa expandir seus projetos e alçar planos mais altos. Aqui começam as interessantes mutações desta animação, cuja atração maior para o espectador-infantil, em princípio, é sua técnica de projeção em Terceira Dimensão, o conhecido 3D. O que lhe permite vivenciar a trama como estivesse dentro dela. Pode desvendar, assim, a ambição desmedida do vilão Shelbourn, que tudo faz para manter o estado de coisas surgido da inesperada invenção de Flint, o bruxoalquimista.0
Shelbourn introduz na tela o vilão que não quer controlar o mundo para se tornar invencível, quer somente aumentar seu poder político. Se puder alcança o barco que o levará com tudo que obteve para manter sua posição, enquanto a ilha naufraga numa tempestade de torta. É o contraponto perfeito do “herói” Flint, sem ambição alguma, inclusive a de não ter idéia da validade de sua invenção para tirar a humanidade da fome. Ele queria apenas fazer sua máquina funcionar, como se fosse o videogame que se joga e o resultado é o deleite de se alcançar pontos. O inventor, enfim, que Shelbourn queria para levar adiante seus planos políticos. Ao lado deles está a aprendiz de “foca” (repórter principiante), Sparks, que não tem a menor noção do que se passa, transmitindo o que vê sem buscar o conteúdo. Seu intento é conseguir entrevistar Flint, para torná-lo uma celebridade. Está completo o quadro moderno das “inocentes desambições” deste Milênio Iniciante.
Criação de Flint lhe dá muitos problemas
A cobertura do milagroso invento de Flint lhe cria mais problemas que o torna um criador consciente de seu poder transformador Todos veem nele uma maneira de resolver seus dilemas. Earl para satisfazer a fome de seu filho Cal (Bobb´e J. Thompson), o grandalhão Brent (Andy Samberg) uma maneira de se livrar das fraldas de bebê das quais é garotopropaganda e o pai a possibilidade de fracasso do filho, para voltar ao seu negócio de sardinha. Sem contar o já citado Shelbourn que vê sua gestão revigorada, a economia da ilha aquecida, as filas de turistas se multiplicarem incessantemente. Cada um deles, como se vê, tem motivos diferentes para lutar pela perenidade do invento de Flint, mantido em funcionamento graças ao improvisado laboratório montado por ele nos fundos de sua casa. É como se descobrissem uma mina de ouro e todos lutassem para tirar dele seu quinhão.
Nenhum deles imagina que ele poderia, dado a seu sucesso em todo o mundo, saciar a fome de milhões de trabalhadores. A dupla Lord/Miller não os impulsiona para este dilema. Pelo contrário, envereda por outro caminho: o do consumo incessante de alimentos pelos habitantes da ilha, a ponto de não diferenciarem a necessidade natural, gerada pela fome, da gula e do desperdício. E, devido a isto, chegam ao perigoso hábito de consumir calorias em demasia. Earl ao implorar a Flint por comida para o filho, o exemplifica. O garoto começa por saciar a fome, depois come por ser atraído pelo hambúrguer, até querer engolir tudo ao seu redor. Vai crescendo, engordando, a ponto de quase explodir. O mesmo acontece ao seu redor. Comer para eles não representa mais a necessidade básica é uma ação de simples consumo, o girar da máquina que alimenta a economia pela qual tanto luta Shelborn. Transforma-se, assim, numa droga geradora de divisas, cujo controle é quase impossível.
Tá chovendo Hambúrguer - Imagem: Sonhos de uma garota.
Consumidores não dão conta de tanto alimento
Alguma semelhança com as sociedades centradas no consumo absoluto, etiquetado como consumismo, não é mera coincidência. Com o tempo, a tempestade de pratos variados, dentre eles, pizza, se torna constante. Habitantes de Boca Grande e os turistas já não dão conta da quantidade de iguarias que se abate sobre eles. Flint tem agora o dilema de sua vida: pôr termo a seu invento. E a trama leva-o a uma batalha no céu ao estilo “Guerra nas Estrelas”, pilotando uma máquina com Brent, Sparks e o macaquinho Manny (Benjamim Bratt). Há um combate entre ele e os que procuram manter o caos. Numa ironia entre a abundância, restrita ao consumo de poucos (os habitantes da ilha e os turistas), e a cruel realidade da fome de milhões, ele tem de deter a produção em massa de pratos sofisticados.
“Tá Chovendo Hambúrguer”, uma aparente brincadeira para a criançada que adora hambúrguer e outras iguarias como pizza, não deixa de ter suas sutilezas. Sem discutir a fome que grassa no planeta discute o caos que se estabelece quando a criação não tem objetivo. Assim como surgiu, o invento de Flint não deixa muitas consequências, salvo pelo fato de destacar que se vive numa época de consumo pelo consumo, em que tudo é produto, sem considerar as necessidades básicas do ser humano. Flint, embora conquiste Sparks, não tem mais sucesso que Shelbourn, largado num barco em pleno mar. De um modo ou outro, eles se equivalem: um por querer a invenção a qualquer custo, sem pensar em sua utilização (o velho dilema: ciência x capital), o outro por ver nela utilidade, mas apenas para seus interesses pessoais.
Centro do filme são hamburguers e pizzas
São personagens típicos de antigas epopéias em situações modernas. Flint não é o herói positivo que reverte uma situação desfavorável, pondo-se a serviço da justiça e da esperança. Sua luta não segue em linha reta, de fácil identificação. Cria, no entanto, uma empatia com o espectador-mirim devido ao tratamento distante que o pai lhe dedica, o desdém constante sofrido por parte dos que o acham um fracasso e os atropelos que seu invento lhe cria. Porém, como Flint, não se investe contra o vilão Shelbourn, cujas trapaças são comuns ao seu universo, porquanto notícias sobre falcatruas são frequentes em sua TV. Talvez se projete mais na atrapalhada mocinha Sam Sparks, de nome masculino, que morre de amores pelo anti-herói Flint e supere com ele os perigos criados pelo vilão Shelbourn. O centro da ação, porém, são o hamburger, a pizza e a torta gigante desejo de consumo da garotada mundo afora, aqui tão abundante que não provoca fome.
Tá chovendo Hambúrguer - Imagem: Cinema Uol.
(Fonte: Cloves Geraldo - Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis, "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".)